Davi e Jônatas: o afeto entre iguais

A afetividade entre dois homens, ou duas mulheres vai além de interesses sexuais, e justamente esse é o ponto que é colocado na balança na história de Davi e Jônatas. Nas descrições do relacionamento entre o jovem príncipe e o pastor de ovelhas sempre é colocada em xeque a sua real orientação, se eram um casal ou profundos amigos.

A tradicional e obviamente mais aceita interpretação deste relacionamento é de que era uma amizade profunda e bastante íntima entre dois homens. E constantemente quando levantamos a questão de uma possível relação amorosa entre esses dois rapazes se fala em eisegese, ou a interpretação dos textos de acordo com o que queremos que o texto fale. Bater o martelo sobre essa interpretação é difícil, pois mesmo utilizando as melhores ferramentas de interpretação do texto podemos cair nos erros que muitas vezes nem sabemos que existem, como a heterossexualidade compulsória, quando imaginamos que toda e qualquer pessoa é heterossexual, qualquer outra variedade carece de esclarecimento.

Embora seja fato notório que nem todas as pessoas são heterossexuais, presumir isso é tão natural e corriqueiro que nem pensamos que existem outras possibilidades. Mas ainda assim, não é correto e, não seria a primeira vez na história que esse erro causou no mínimo desconforto em festas familiares. Aqui já colocamos uma informação além daquelas fornecidas pelo texto bíblico.

Pela antiguidade dos relatos, e pela própria intenção do autor, não é possível saber com exatidão o que se passava ali, mas temos alguns poucos relatos dos seus encontros e dos sentimentos dos dois rapazes. Vale ressaltar que esses textos não são sobre o relacionamento dos personagens, ele faz parte da narrativa de ascensão de Davi como rei de Israel e a queda de Saul, pai de Jônatas, pura e simplesmente. Mas não significa que não possamos encontrar paralelos com a nossa realidade.

Se tirarmos a nossa mania insistente de presumir que todas as pessoas são automaticamente heterossexuais nós nos deparamos com as cenas em que os dois rapazes vivem momentos extremamente difíceis para dois homens heterossexuais da atualidade de repetirem.

Entenda: é claro que a diferença geográfica e temporal entre o Brasil atual e a Palestina da Antiguidade poderiam muito bem dar conta desta diferença de comportamento. Mas ainda assim, não encontramos relatos parecidos em outros momentos da Bíblia.

As cenas são curiosas e descritas da seguinte forma:

O encontro de almas em 1ª Samuel 18:1-4:

“Sucedeu que, acabando Davi de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma. Saul, naquele dia, o tomou e não lhe permitiu que tornasse para casa de seu pai. Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. Despojou-se Jônatas da capa que vestia e a deu a Davi, como também a armadura, inclusive a espada, o arco e o cinto.” (Almeida Revista e Atualizada) 

Mesmo em outras traduções em que utilizam a palavra “amizade” ainda assim o contexto é bastante forte. Não é uma emoção simples e passageira, é profunda e visceral. Embora seja um relato curto, é carregado de símbolos: a repetição enfática do trecho “amava como à sua própria alma”, a aliança entre os dois, a entrega de Jônatas de seus símbolos de guerra para Davi. Existe uma grande probabilidade de que essas armas e trajes de guerra fossem únicos e carregassem simbologia da casa real, afinal Jônatas era o príncipe de Israel, algo que não deveria ser facilmente entregue para um guerreiro plebeu, por mais notável que fosse.

A revolta de Saul em 1 Samuel 20:30-33:

“Então, se acendeu a ira de Saul contra Jônatas, e disse-lhe: Filho de mulher perversa e rebelde; não sei eu que elegeste o filho de Jessé, para vergonha tua e para vergonha do recato de tua mãe? Pois, enquanto o filho de Jessé viver sobre a terra, nem tu estarás seguro, nem seguro o teu reino; pelo que manda buscá-lo, agora, porque deve morrer. Então, respondeu Jônatas a Saul, seu pai, e lhe disse: Por que há de ele morrer? Que fez ele? Então, Saul atirou-lhe com a lança para o ferir; com isso entendeu Jônatas que, de fato, seu pai já determinara matar a Davi. Pelo que Jônatas, todo encolerizado, se levantou da mesa e, neste segundo dia da Festa da Lua Nova, não comeu pão, pois ficara muito sentido por causa de Davi, a quem seu pai havia ultrajado.” (Almeida Revista e Atualizada) 

Além da cena digna de drama novelesco por causa de amor adolescente, existem outras nuances neste relato: Saul se ira contra o filho ao perceber que ambos estavam tramando para livrar Davi da morte, acusando Jônatas de escolher Davi. A palavra escolha em si já é questionável, mas ainda a acusação de Saul fala da “vergonha do recato de sua mãe”, também traduzido como “nudez”. Existem especulações sobre o significado desta acusação, afinal o suposto pecado de Jônatas era contra Saul, pois se aliara ao homem que Saul elegeu como inimigo, é inquietante pensar no motivo da vergonha recair sobre a mãe e não sobre o pai, mais ainda sobre a nudez da mãe, o que alguns teóricos vão especular que se trata de um argumento contra as relações sexuais entre Davi e Jônatas, que “rejeitam” a genitália feminina, apenas especulação.

Outro trecho é o lamento de Davi pela morte de Jônatas em 2 Samuel 1:26:

“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; tu eras amabilíssimo para comigo! Excepcional era o teu amor, ultrapassando o amor de mulheres.”(Almeida Revista e Atualizada) 

Até aqui as maiores declarações e gestos de amor eram de Jônatas para Davi, mas ao saber da morte do amado, Davi, finalmente lança um elogio bastante contundente: compara o amor de Jônatas ao amor das mulheres, sendo o primeiro maior que o segundo. O questionamento aqui gira em torno da concepção do amor das mulheres naquele tempo.

Não é preciso nem dizer como era complicada a vida de uma mulher na antiguidade, embora a Bíblia tenha um grande relato sobre um amor saudável e igualitário entre homem e mulher no livro de Cantares, muitas são as demais passagem que mostram como a sociedade dava o valor da mulher como apenas reprodutivo, ou para o prazer masculino. Relatos de estupro, misoginia e de mulheres sendo tratadas como posses dos homens.

A fala de Davi coloca Jônatas acima disso: acima do simples prazer, acima da necessidade biológica de reprodução, acima do desejo masculino de ter alguém. É um amor profundo que tem marcas fortes, a princípio evidente mais em Jônatas, mas que também deixou marcas em Davi.

Como dissemos no início: não é possível determinar com exatidão a natureza deste relacionamento. O maior empecilho para esta tarefa é o próprio autor que não se importa nada com a nossa necessidade de fofocar sobre a vida de dois homens que viveram milênios antes de nós. O autor, e ouso dizer até mesmo o Deus inspirador do texto, se preocupa em passar o relato do que aconteceu, e descreve o relacionamento apenas na medida em que ele é importante para a história.

Podemos chamar apenas de “relacionamento”, pois até mesmo reduzir a “amizade” é uma influência da heterossexualidade compulsória que permeia nossas mentes ao se deparar com qualquer pessoa ou personagem.

Ainda assim, a presença desses relatos faz com que nós questionemos a rigidez da forma como nos relacionamos com um ou outro(s) gênero(s), nos faz questionar a heterossexualidade compulsória, se de fato é tão importante assim nós sabermos se tal pessoa é ou não isso ou aquilo. Mas também faz com que pessoas LGBTQIA+ possam ver que o seu amor não é o bizarro, antes o amor e a demonstração de afeto entre diversos gêneros não são só bons, mas fazem parte da história do relacionamento de Deus com o ser humano.

Texto produzido por Arthie Rocha